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O Belo Fluído

Por Lívia G F Campanholi


Uma das melhores sensações que podemos ter na vida é de nos sentirmo-nos aconchegados quando adentramos qualquer lugar. Essa sensação pode se transfigurar de várias formas; seja pela arquitetura do local, pelo som ambiente, pela disposição da mobília etc. Enfim, os contextos podem ser múltiplos e as personalidades infinitas também, o que caracterizará a intensidade dessa percepção de forma singular.

Esses dias me recordei de como foram as minhas primeiras vivências e impressões ao entrar em um ambiente educativo baseado na Pedagogia Waldorf. E um aspecto que me surpreendeu positivamente, pra não dizer de ‘forma instigante’, foram as cores dos ambientes e tecidos, a disposição dos elementos artísticos, naturais e mobiliário, formando um conjunto peculiar e harmônico entre si. Havia uma coerência entre eles, algum princípio estético desconhecido por mim até então. Duas formas em especial me chamaram mais a atenção: os Cantinhos de época e as Aquarelas feitas pelas crianças e que estavam dispostas como numa grande galeria semanal. Tudo simples, coloridos e com uma legítima intensão de serem apreciados. O conforto visual dessa ‘galeria’ acalmou-me a alma ansiosa! Outro fator que me chamou a atenção foi que exatamente esses dois fatores se repetiam em cada sala de aula desde o jardim e se metamorfoseavam no decorrer dos anos escolares. Percebe-se a escolha livre e criativa dos elementos em cada sala; afinal, nenhuma sala, assim como nenhum indivíduo, é igual! A imagem foi como se fosse uma labareda, ardente e flamejante, que visitasse cada sala e corredor com um sopro caloroso de beleza.

Algum tempo já se passou e eu continuo sentindo essa mesma calorosa sensação toda vez que tenho a oportunidade de conhecer uma nova escola por onde passo. E sempre me vem outra percepção: a unidade. Esteja onde eu estiver, independente das condições materiais de cada escola, as produções dos alunos revelam o que se passa na alma daquele ano escolar, o seu desenvolvimento anímico expresso – uma digital colorida. Há uma ordem legítima e reconhecível do desenvolvimento infantil que permeia as produções das crianças. E hoje, mais consciente do que ocorre, me satisfaz ainda mais a escolha pedagógica que me propus. Essa ordenação temporal dos temas e das práticas artísticas traz uma segurança que preenche um aconchego para o meu pensar, que reconhece os princípios que as sustentam.

A Pedagogia Waldorf, criada por Rudolf Steiner (1861-1925), pelos princípios da Antroposofia reconhece as fases do desenvolvimento humano em Setênios, sendo que os três primeiros deles são fundamentais para a constituição das forças físicas, anímicas e culturais para a melhor apropriação do Eu à sua existência terrena. O autor estabeleceu uma tríade importante para simbolizar as condições fundamentais que o meio ambiente deveria oferecer a cada uma dessas fases primordiais: o Bom, o Belo e o Verdadeiro.

As razões pelas quais encontramos tanta beleza no ambiente escolar não se limita à essa razão. Entretanto, resumidamente, esses são fatores importantes a serem considerados nessa escolha estética. O quê, o como e por quê cada elemento está disposto deve ser conhecido para que de fato nos aproximemos do valor de cada um deles. A literatura Antroposófica amplia esse entendimento.

Assim sendo, gostaria de aprofundar minha resenha tentando clarear um pouco sobre a escolha didática no ensino fundamental pelo ensino sistemático da Aquarela. Essa técnica já é ofertada de forma mais livre e menos direcionada no jardim de infância Waldorf, porém a partir do primeiro ano escolar as crianças são convidadas gradativamente a explorar tal vivência sob a tutela do professor(a) de classe. A aquarela se desenvolve semanalmente no decorrer dos anos, sem nenhuma intenção ‘profissionalizante’ sobre a técnica, mas isso não impede que ao final do percurso escolar, lá pelo fim do Ensino médio, comumente encontramos jovens habilidosos com a técnica e com apurado senso estético.

No recorte do tempo da ‘Beleza’, dos 7 aos 14 anos – o Ensino Fundamental – vemos que o condutor inicial dessa prática artística é a Fantasia, através de lindas imagens que norteiam os gestos primordiais e as características anímicas de cada cor. Sendo que essas são apresentadas gradativamente ao longo do tempo; primeiro as primárias, em seguida as secundárias e por fim as terciárias. As crianças já experimentam essa mistura de cores desde o jardim e a fazem no meio aquoso nos primeiros anos escolares sem, contudo, intelectualizarem os princípios físicos desses fusões, algo que irão gradativamente explorar nos anos escolares mais adiante com pleno exercício do Pensar. Por hora, é a fantasia das imagens que aquecem o seu Sentir e o seu Fazer, as impulsionam a organizar outras estruturas em si. Ou seja, pela alegria e veneração do momento, pela sonoridade das histórias e músicas, pela conduta segura e entusiasmada do educador numa prática constante, levam os educandos primeiramente a adquirirem veneração pela cor e pela água como elementos naturais disponíveis ao ser humano, respeito por essa prática, a organização dos materiais necessários, hábitos essenciais para o uso dos materiais e dinâmica de sentir, fazer e contemplar o belo produzido por si e pelos colegas. Ou seja, há muitas camadas formativas envolvidas nessa prática artística. Essa é uma das construções estabelecidas durante os anos escolares e que estarão impregnadas na alma do indivíduo para o seu futuro.

O domínio do meio aquoso também é gradativo. E também por isso a figuração só aparece a partir do 4° ano escolar, depois das crianças já terem vivenciado a natureza das cores e explorarem as possibilidades infinitas de compor paisagens num 3° ano. Isso se dá por um motivo importante da biografia humana a ser considerado, também conhecido como Rubicão:


"Quando a criança tiver chegado entre o 9º e o 10º anos de vida ela pode, então, pela primeira vez, diferenciar-se de seu meio ambiente. Em verdade somente nesse momento surge realmente a diferença entre sujeito e objeto: sujeito = o si próprio, objeto = o outro. Podemos então começar a falar de coisas exteriores. Anteriormente, tínhamos de tratar as coisas exteriores como se elas fossem, em verdade, unidas com o corpo da criança. (R. S. GA 311, 3a palestra.)

As histórias que permeiam o currículo podem propor temáticas num 4° e 5° anos, com a transformação da forma de preparar o ambiente aquoso do papel, que passa a ser mais consciente e cada vez mais menos submerso, como o uso de esponja etc. Gradativamente, no decorrer dos anos, outro suporte pode ser explorado, como o papel jornal ao invés do tradicional canson para aquarela; os pincéis podem ir diminuindo de tamanho à medida que se faça necessário para o detalhamento dos trabalhos no Ensino Fundamental II; novas possibilidades técnicas e usos criativos podem ser propostos para a produção... Não são motivos de se perder a aquarela, mas há muito para ser conhecido e a ser dedicado a ela. A importância das imagens é bem esclarecida por Rudolf Steiner no trecho a seguir:

"Até próximo ao 12º ano de vida a criança não tem, de modo algum, o conceito de causalidade. Ela vê aquilo que é móvel, representações mentais móveis. O que existe como imagem, como música, ela vê, percebe, mas, para o conceito de causa, ela não tem sentido algum até o próximo do 12º ano. Por conseguinte, o que ensinarmos à criança até próximo ao 12º ano precisa estar isento do conceito de causalidade. Só aí poderemos contar com que a criança consiga compreender as relações usuais entre causas e efeitos. Só a partir daí a criança começa, em verdade, a formar pensamentos; até então tinha representações mentais de imagens. Aí já se prenuncia, em verdade, o que depois, com a puberdade, surge por completo: a vida de pensamento, a vida de julgamento que, em sentido mais estreito, está ligada ao pensar. A vida entre a troca dos dentes e a puberdade está ligada ao sentir, e a vida antes da troca de dentes está ligada ao querer. Este último está em processo interior de desenvolvimento e, nessa primeira fase da vida, está situado, não sob os pensamentos mas, sim, sob a imitação daquilo que se acerca da criança. Mas, com aquilo que vem de encontro à criança de maneira corpórea fixa-se na sua corporalidade o aspecto moral, o espiritual. Por isso é também impossível ensinar à criança, do 10º ao 11 º anos de vida, muitas vezes até mesmo do 11º ao 12º anos de vida, algo em que se tenha de levar em conta a causalidade." (GA 306, 5a palestra.)

Uma grande contribuição do elemento artístico-visual após a trocas dos dentes, inclui-se a aquarela, é a formação da memória, segundo nos informa o Currículo Waldorf ordenado por faixas etárias de E. A. Stockmeyer, traduzido por Sonia Setzer (2010). Outra transformação que ocorre nessa faixa etária que é importante ressaltar é a do Sistema Rítmico no corpo das crianças. A imagem deve predominar no ensino dos primeiros anos escolares e também a musicalidade e o ritmo; essa lei pedagógica deve também permear a prática em aquarela.

O meio aquoso (e o impulso vívido das cores também) por si só é bastante desafiador e transformador da alma, ele exige mudanças de posturas para aqueles que desejam adquirir melhores resultados em suas produções. As crianças, e os professores também, se sentem muitas vezes ativados e transformados ao longo do tempo conforme praticam a pintura em aquarela. Quando uma pintura seca ela se transforma num espelho de nossas emoções no momento da prática e essas revelações podem se tornam verdadeiros tesouros pedagógicos para aqueles que as sabem ler. Digo terapeutas e educadores, dentro de um contexto e de uma compreensão ampliada dessa observação; eis outra contribuição pedagógica da prática. À criança não devemos levantar tais impressões, a ela cabe usufruir de seus benefícios sanadores.


“Ao lidar com a cor fluida criamos mais diretamente a partir das vivências de cor, luz de nossas noites e agimos sobre todos os processos de nosso corpo, concebidos em viva fluência. Vale acentuar o efeito sobre o sangue, portador de nossas sensações e sentimentos. As impressões que recebemos através de nossos olhos são levadas até o sangue... a alma vive inteiramente na cor... Animicamente, um tal convívio com as cores age, a partir do sangue de forma vivificante sobre as sensações e através dessa vivificação, também nossas representações adquirem nova vida”
Extraído do livro Biografia e Psique – Rudolf Treicher.

O objetivo final dos anos escolares Waldorf é contribuir para a formação do ser humano. O ensino da Aquarela é um dos elementos artísticos que contribui para esse fim:

"E assim, esse olhar para o ser humano livre, o ser humano que sabe dar, a si próprio, sua direção na vida, é aquilo que nós, na Escola Waldorf, aspiramos acima de tudo." ( R. S. GA 307, 13a palestra.) .

Uma vez que estudamos os seus princípios não há como não nos sentirmos desafiados a implementá-los mediante tão nobre tarefa e profunda oportunidade de autodesenvolvimento. O conforto da alma se fortalece através da arte, mas o convite ao trabalho se intensifica!



Lívia Gomes Ferreira Campanholi, mineira criada em Goiás, é educadora há 25 anos, tendo passado como professora pelo ensino público e privado, da educação infantil à universidade. Desde a infância foi estimulada às manualidades e às artes, pintando, cantando, lendo, teatralizando...

Quando ainda aluna da Faculdade de Letras pela UFG participou da fundação do grupo Guaya de Contadores de Histórias. Anos mais tarde se fez Mestre em Educação pela mesma universidade. Ainda em Goiânia, especializou-se em Educação para a diversidade, Alfabetização e Educação infantil, pela PUC-Goiás.

Já em São Paulo, formou-se Professora Waldorf pelo Seminário da Escola Rudolf Steiner e por treze anos seguiu como Professora de Classe na Escola Waldorf São Paulo e Escola Waldorf Francisco de Assis.

Aperfeiçoando-se ainda um pouco mais, cursou Pedagogia pela Uninove, Antropomúsica pelo Instituto Ouvir Ativo e Curso técnico em Canto pela ETEC de Artes.

Habilitou-se em Artes Plásticas pela Escola Panamericana de Artes e Design – SP, bem como tornou-se Especialista em Artes-Manuais para Educação pela FACOM. Atualmente cursa a Pós Graduação em Artes pela Faculdade Rudolf Steiner.





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