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A Boneca Waldorf: Muito muito além de uma boneca de pano


Muita gente já ouviu falar das bonecas Waldorf: elas são bonecas de pano presente em escolas e jardins de infância baseados na pedagogia antroposófica de Rudolf Steiner.

Elas fazem parte de um projeto pedagógico que entende a escola como um ambiente de construção do ser humano como um todo e não, como um espaço restrito à formação da futura mão de obra qualificada.

Essas bonecas surgiram a partir de uma tradição europeia e guardam algumas características importantes: são brinquedos, são simples, são construídas a partir de valores éticos e estéticos. Falemos de cada uma delas.

A primeira característica dessas bonecas é ser brinquedo:

E como tal devem ser usados por crianças no seu livre brincar. Não são apetrechos para distrair os pequenos, mas sim facilitadores de jogos imaginativos de cuidado consigo e com o outro. Devem resistir à brincadeira, mesmo quando a criança brincar de forma não tão tranquila.

Hoje há uma boa oferta dessas bonecas para vender, mas, como são artesanais, muitas vezes acabam sendo excessivamente caras. Por conta disso, os adultos que presenteiam uma criança com a boneca querem escolher a mais linda e perfeita e, o que faz com que a boneca se transforma numa peça de decoração. A criança não pode mais levar para o jardim para não sujar, não deve pentear o cabelo para não estragar o penteado, não consegue trocar a roupinha cheia de botões e fechilhos.

Isso remete à segunda característica da boneca, ser simples.

E o que isso significa?

No mercado de brinquedos há uma imensa variedade de bonecas, entre as opções disponíveis, os bebês reborn vem ganhando grande destaque. São bonecos artesanais, de material sintético, que reproduzem com exatidão cada detalhe de um recém-nascido. As bonecas Waldorf são o oposto disso. Elas podem ou não ter traços faciais (quando tem são sempre de forma simples) e devem manter uma estrutura geral do ser humano, mas, é por entender que a boneca é um brinquedo e que a brincadeira infantil exerce um papel fundamental na constituição do ser humano, que essas bonecas jamais devem ser muito detalhadas.

A imaginação da criança vai muito além do suporte material oferecido, mas as imagens do ambiente são os elementos que preenchem o campo imaginativo dos pequenos infantes.

Falando das imagens ofertadas, podemos discutir os valores estéticos da boneca.

Ao falar de estética, assim como ao falar de imagem, é comum pensar nas características visuais que um objeto possui, mas estética refere-se a todos os sentimentos e sensações produzidas em uma pessoa a partir de dados sensoriais e, portanto, engloba todos os tipos de representações: visão, audição, tato, olfato e paladar.

A estética entendida como ideal na antroposofia é a que proporciona uma experiência saudável, harmoniosa e conectada com a natureza.

O último traço fundamental das bonecas Waldorf: os valores éticos.

Desde sua construção, essas bonecas primam por valores éticos, seja no uso de materiais socioambientais sustentáveis, seja na produção delicada de um artesão (profissional ou amador), que deve ter em mente que seu estado de espírito impregna-se na “alma” da boneca.

Não faz sentido, para quem tem consciência do que essa boneca significa, gastar alguns reais a menos e financiar a degradação ambiental ou a exploração de mão de obra do artesão.

Isso não significa que ela deva ser economicamente inacessível, mas sim, que não é possível colocá-la numa lógica consumista, nem para quem vende, nem para quem compra.

Aliás, a boneca feita como doação para uma criança ou um grupo delas carrega muito mais valor.

Depois de entender que o que define a boneca Waldorf não é a técnica, podemos falar de alguns traços típicos dessa boneca de pano tão especial; detalhes que buscam criar um brinquedo pedagógico cheio de significado.

Como essa boneca é um brinquedo que busca reproduzir um criança pequena, o primeiro passo é olhar para esse ser humano nas suas características mais amplas.

Nessa observação é preciso se atentar à composição de seu corpo, que qualidades cada parte possui e suas proporções.

O corpo humano pode ser dividido didaticamente em 3 partes: cabeça, tronco e membros. Cada uma dessas partes está interligada com as demais.

Como poderíamos representar esse corpo?

A cabeça possui aspecto esférico e rígido, dada a existência de um osso duro por fora (crânio) para proteger um conteúdo macio por dentro (cérebro). Em oposição, os membros (braços e pernas) têm aspecto alongado, com ossos duros por dentro e músculos tenros que os revestem, dando-lhes forma. O tronco, situado entre cabeça e membros, além de servir de ligação, apresenta forma intermediária entre eles, sendo como uma “espera alongada”, ou seja, quase oval. Essas características precisam ser consideradas na hora de construir a boneca.

Além disso, é preciso garantir a correta proporcionalidade.

Na criança, a cabeça é proporcionalmente maior que no adulto e representa de ¼ a ⅕ do tamanho do corpo dela. Tronco e pernas dividem, em partes iguais, o restante do tamanho total.

No mercado de bonecas de pano há vários exemplos de bonecas que não respeitam esse perfil. É verdade que algumas são até graciosas peças de decoração, mas a boneca aqui discutida é aquela que melhor se adequa ao jogo infantil de auto projeção e projeção do mundo.

Pensando nisso, uma linda Tilda, ricamente elaborada com sua cabeça diminuta diante de um corpo alongado, não oferece uma imagem saudável e harmônica que alimente o mundo interno da criança. De forma análoga, uma boneca com pernas e braço extremamente finos não apresenta uma representação sadia de um corpo capaz de se auto sustentar.

Tendo pensado na forma geral que representa toda a humanidade, é hora de pensar naquilo que faz essa boneca singular, tal como a criança que a receberá.

Que características específicas a boneca terá? Que tom de pele? Que tipo e cor de cabelo? Que formato e cor de olhos? Ela representará algum tipo de deficiência? Como fazer isso de forma respeitosa?

Tendo construído a imagem visual da boneca, podemos pensar em moldes. Existem diferentes moldes que atendem a essas características.

Caso queira construir o próprio molde, sugiro começar definindo o tamanho da cabeça, usando uma circunferência de referência, a partir disso, faça um molde do corpo com um pouco mais do que o dobro do tamanho inicial.

Embora o molde fique com a proporção de ⅓ para ⅔ , quando for feita a cabeça efetiva da boneca o resultado final será de ¼ do tamanho total, pois a malha estica mais no tronco e membros.

Feito o desenho do molde, é importante escolher o material a ser usado, bem como nas suas cores. Para ajudar nesse processo, fazer uma pesquisa de inspiração no Instagram, Google e Pinterest pode ser uma boa alternativa.

Nessa pesquisa, além de boas referências visuais, você pode encontrar dicas e técnicas interessantes: amarração da cabeça da boneca Waldorf, como fazer ponto invisível, como fazer ponto atrás e ponto cheio para o bordado do rosto, diferentes formas de fazer o cabelo. Todo esse conhecimento te ajudará a construir a sua própria boneca.

Ao fazer sua primeira boneca, alguns detalhes ficarão tortos, o acabamento geral não ficará perfeito. Se nos dedicamos e aplicamos nossa energia fazendo o nosso melhor, ela será muito mais significativa para a criança do que uma boneca da melhor artesã europeia. Aliás, é no fazer com sentido que melhor educamos as crianças a serem pessoas íntegras e respeitosas.

Depois de entender a boneca Waldorf nos seus valores e nos seus traços típicos, outro ponto importante desse brinquedo se refere ao tipo de representação oferecida.


Em geral, quando procuramos no mercado de brinquedos uma figura humana que represente uma criança, temos uma grande oferta de bonecas com traços femininos e biótipo caucasiano. Encontrar meninos em geral ou meninas de outras etnias não é tarefa fácil.

Essa falta de oferta aponta para duas questões: quem pode brincar de boneca? Que tipo de construção social isso implica?

Meninas e meninos podem e devem brincar de boneca, da mesma forma crianças brancas, negras, indígenas, asiáticas também tem esse direito.

Na lógica do consumo, no entanto, o boneco se destina apenas às meninas, futuras mães e únicas responsáveis pelo cuidado dos filhos, em uma evidente referência ao ditado “Quem pariu Matheus, que o balance”.

Além disso, a representatividade de quem recebe cuidado é só de um grupo, exatamente aquele com maior poder aquisitivo, como se esse merecesse todo o cuidado do mundo e os outros não.

Uma boa boneca deve oferecer à criança, primeiramente, a possibilidade de se auto referenciar. Portanto, é importante que um lindo garotinho negro tenha acesso a um suporte adequado para brincar com um boneco no qual ele se reconheça.

Então, crianças brancas devem brincar apenas com bonecas brancas e meninas só podem ter bonecos com traços femininos? Não.

A boneca serve de suporte para brincadeiras imaginativas de cuidado de si e do mundo e, para que possamos evoluir como sociedade, é importante que meninos e meninas, brancos e negros, europeus, africanos e asiáticos possam cuidar e ser cuidados.

Um ponto ainda mais crítico refere se às crianças com deficiência: fazer uma representação de uma criança deficiente não deve jamais ser caricata, deve guardar o mesmo respeito que qualquer ser humano merece.

Depois de discutir um pouco sobre a boneca individual, gostaria de propor também uma reflexão sobre grupos de bonecas que representam uma família, uma classe ou um conjunto de crianças, pois toda criança merece a possibilidade de se ver representada na sua brincadeira, seja na sua singularidade, seja na sua coletividade.

Ter isso em mente não significa ter uma atuação doutrinária (aliás, essa atitude visa o oposto disso), mas sim dar a toda criança a possibilidade de referenciar-se no livre brincar.

Numa sociedade mestiça, com uma grande quantidade de famílias monoparentais e crescente agrupamentos que fogem dos moldes heteronormativos, ter apenas “familinhas” de bonecos que tenham o mesmo tom de pele, compostas de papai, mamãe e filhos, com certeza não abarca a experiência de muitas crianças na atualidade.

Essa discussão serve para retomar a proposta fundamental da Boneca Waldorf : ser um brinquedo típico dos jogos imaginativos, e que deve conter uma boa representatividade da humanidade que habita o pequeno corpo deste ser em formação.



Ana Carolina Gomes Bueno


Psicóloga e mãe Waldorf


Entre outros interesses ligados à infância, vem estudando há 4 anos a relação entre os brinquedos e a construção da subjetividade


@carol_bueno_infancia_livre

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